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domingo, 24 de fevereiro de 2013

2013: o ano que o Mississippi oficialmente aboliu a escravidão

Eu, com todos os meus 34 anos de vida ainda consigo me ver perplexa com a condição humana, ainda me surpreendo com as argumentações que tentam legitimar o racismo, com as leis que deixam de acolher demandas históricas e mínimas que por anos nos foram negadas, como algumas pessoas podem ser reacionárias quando se trata dos direitos humanos para o povo negro. E, pasmem, ainda fico surpresa com a capacidade do povo estadunidense criar artimanhas para não seguir a lei quando isso se refere a efetivação dos direitos dos negros neste território. Esta é uma nação que fez parte de sua riqueza apoiada na exploração dos imigrantes e no sangue e suor extraídos dos povos negros raptados da África durante a escravidão.
Mas o que me impressionou nesta semana foi saber que a escravidão no Mississippi apenas foi abolida legitimamente, após o filme Lincoln, um filme que foi lançado em 2012 nos EUA.
Parece um mundo surreal, mas explico.
Quando o presidente dos EUA, Lincoln, a quase 150 anos aboliu a escravidão, o estado havia ratificado a 13a. emenda, porém, cada um dos 36 estados deveria oficializar a lei individualmente. A abolição foi ratificada, pois 3/4 dos estados aprovaram a lei, o que bastaria para faze-la entrar em vigor. Mas a acerca de duas semanas atrás, o estado de Mississippi ainda não havia oficializado a decisão, pois não havia entregue esta ao  arquivista federal.
Portanto, apenas no dia  7 de fevereiro de 2013, o estado do Mississippi - historicamente conhecido pelo racismo, pelo trabalho escravo nas plantações de algodão - oficialmente aboliu a escravidão.
Hoje, 24 de fevereiro de 2013, parece estranho que uma pessoa possa dar uma notícia como essa. Mas como acredito que poucas coisas no mundo  provoquem vergonha ao povo dos EUA, darei a notícia surpresa diante dessa resistência, mas também sabendo que poucos povos no mundo seriam tão adequados para nos proporcionar essa surpresa.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Django tira o capuz da Klan de muita gente

Pensei muito no que escrever como título para uma análise crítica do filme Django Livre, de Quentin Tarantino, e foi muito difícil expressar tudo que senti ao assistir o filme em poucas palavras, em um título, por isso, decidi que não devia ser apenas a expressão de um sentimento de empolgação, mas que eu queria brincar. Django fala sério, mas também é uma brincadeira. Quando alguém decidi assumir para os outros que é gay dizemos que ela "saiu do armário". Por isso, decidi brincar com isso dizendo que Django "tirou o capuz da Klan" de muita gente. Ou seja, muita gente teve que expor seus preconceitos por se sentir incomodado com Django. Na internet há quem gostou, quem esperava mais do filme, mas também aqueles que aproveitam para expressar sua opinião não apenas acerca da obra, mas sobre o "povo" negro também.  Essas considerações racistas deixarei em um post anexo a este, dedicado àqueles que, graças a Django, "tiraram o capuz da Klan".
Aviso! Se você não viu o filme, não leia essa análise crítica.

Django, não é o melhor filme de Tarantino, mas acho que ele mais acerta que erra. Posso dizer que ele quase me enganou nos primeiros minutos que sai do cinema com um sorriso de orelha a orelha ao ver tantos porcos racistas morrendo, acho que ele acerta em muitas coisas, mas em certos momentos ele deixa a dúvida se não poderia ter sido uma experiência melhor. Talvez eu tenha esperado demais e no fundo quisesse uma experiência como foi em Bastados Inglorius. Talvez por ter aspectos políticos tão bons eu gostaria de ter visto uma trama mais elaborada, mas ao mesmo tempo a simplicidade que move as ações dos personagens não deixa de ser um grande atrativo, pois coloca aqueles que são expostos a opressão como pessoas com todas as suas necessidades e complexidade de sentimentos.

É difícil fazer uma crítica a Tarantino, porque ele criou um gênero de filme que é uma grande brincadeira visual, com diálogos quentes que grudam na orelha e nos fazem sorrir de cumplicidade por vezes. Ele é agradável e divertido, faz enquadramentos estranhos, utiliza fórmulas antigas e novas, brinca de vingador da história dos oprimidos, ama os atores sem preconceitos hollywoodianos e por isso lhes dá mais que papeis, dá presentes, o ator se torna com tanta imersão o seu personagem que muitas vezes percebemos que o elenco tem nomes conhecidos só quando olhamos os créditos. O cara é definitivamente bom.

Posso dizer que Django peca pela simplicidade da história, mas talvez o medo de errar na dose crítica nos EUA, um país tão racista, tenha sido um dos porquês de Tarantino não ter subvertido a história, por exemplo, como fez em Bastardos. Pois como explicar aos tantos velhinhos Republicanos da Academia que tudo aquilo era mera brincadeira com a história? Em Bastardos há uma personificação da guerra, do racismo, das mortes, em Hitler e em seus oficiais, principalmente, em Hans Landa. Como personificar o mal ocorrido na história da escravidão? Isso, e a vontade de não se repetir, também devem ter ajudado com certeza. Entretanto, existem elementos similares entre uma obra e outra, pois do mesmo modo sádico que ele nos presenteia com a morte e o desespero dos nazistas no cinema tomado pelo fogo em Bastardos, em Django presenciamos uma cena bastante forte em que a expressão de raiva de Jamie Fox, a precisão dos golpes e a câmera lenta, enquanto Django chicoteia o homem que torturara a ele e a sua amada, nós tornam mais que espectadores, nos tornam cúmplices da raiva do personagem.

Tarantino, porém, também comete erros, porque não consegue se desvencilhar da velha história do branco que leva o negro a sua redenção, no caso do filme, até a sua vingança e o resgate da esposa. Ele também não aproveita o que pra mim era o clímax perfeito para acabar a história, a cena de tensão em que o Dr. Schultz reluta em apertar a mão de Calvin Candie após a negociação por Bronhilda. Ali, se o filme acabasse seria perfeito, com mais algumas mortes e violência, sim, claro, por favor, com tudo que se tem direito em um filme de Tarantino, mas não, ele decide ''arrastar'' por mais alguns minutos que pra mim eram desnecessários e quebram um pouco o ritmo do filme. Se ele queria matar o personagem de Waltz, tudo bem, odeio cinema água com açúcar, mas reviravoltas podem ser cansativas demais e colocar de novo Django na posição de vítima pode ter tido dois motivos, um, ele realmente gosta de reviravoltas, o que podemos ver em Bastardos e Kill Bill, a outra possibilidade é que ele mesmo tenha feito a crítica a respeito de Django e sua dependência de Schultz, e desejasse mostrar a habilidade deste se auto organizar como homem liberto, sua capacidade de manipular, sua objetividade, enfim.  Na verdade, assim que o Dr. abre as correntes de Django, Tarantino mostra que Django não é um personagem vazio que está ali para ser preenchido por Schultz, não se trata de uma relação mestre e aprendiz, Django é um homem completo, com objetivos, vontades, caráter, e o diretor apenas demarca momentos em que isso tem ficar bem claro, ele sabe atirar, questiona e conduz muitas vezes o rumo que estes darão ao resgate de Bronhilda. Pra mim, que amo Tarantino, prefiro pensar que ele buscou estender o filme preocupado com isso.

Os personagens, como sempre, no filme são bastante interessantes. Dr. Schultz, não é mocinho ou bandido, ele apenas quer sobreviver, e ao que me parece o que dá profundidade ao personagem é o encontro que este faz com a realidade de Django, e talvez a sequência entre o recordar da morte de D´Artagnan estraçalhado pelos cães, suas considerações sobre Dumas e o pedido de desculpas a Django por não ter resistido em matar Candie, seja essa linha tênue entre a negação humana e a construção da consciência e criticidade ao que está ao nosso redor. O Dr. é um homem intrigante, serve a cerveja para ele e Django, serve água para Bronhilde, em uma época que brancos jamais serviriam negros e para um amigo meu isso foi proposital de Tarantino, ele queria Schultz mais esclarecido que os demais. Schultz deixa sua vida ser conduzida pelo destino de outro homem, o personagem de Schultz é no mínimo um estranho. 

Django, é a personificação da necessidade de liberdade plena para viver as coisas simples, ele não quer ser rico, não quero tomar o lugar de ninguém, quer apenas um espaço digno na sociedade para viver com sua amada Bronhilde, essa sim uma personagem que paira no ar, embora seja uma sobrevivente de todas as agressões que vive, esta é a personagem feminina mais aguada de todos os filmes de Tarantino, ela não tem nenhuma faceta, fala ou expressão que a coloque mais além que entre o medo dos patrões e o amor por Django.

Calvin Candie e Stephen, são personagens a parte. Ambos acreditam na inferioridade negra, o primeiro é o patrão branco, interpretado com muita precisão por Leonardo de Caprio, o outro, um empregado negro, interpretado de modo absurdamente fantástico por Samuel L. Jackson. Candie, adora lutas até a morte entre negros, que compra, em quem ''investe'' e aposta, Stephen, parece servir, mas no fim do filme, quando este sai do papel de velho arqueado, senil e maldoso, percebemos que este sobrevive entre os brancos da família da melhor maneira que encontrou, sendo fiel, vigilante e tão vilão quanto qualquer um dos brancos que vivem na propriedade, ele quer sobreviver em meio aos opressores.
A luta até a morte que Candie gosta, chamada de ''mandingo'', talvez seja uma referência ao filme da década de 70 que causou tanta polêmica por tratar de relacionamentos inter-raciais. A luta não está muito longe da lógica do pugilismo ou das lutas de MMA, pois na grande maiorias os lutadores são negros, latinos ou de algum país decadente do Leste Europeu, ou seja, aqueles que a sociedade pouco se importa que se esfacelem em um ringue.

Um personagem a parte é a própria KKK, que o diretor não se preocupa em levar a sério mesmo, dando ao filme uma de suas melhores cenas cômicas. Vale a pena ver e rir. Um dos melhores momentos visuais destes está na sua descida a cavalo na colina iluminados apenas por tochas, cena que remete, acredito propositalmente ao filme, O nascimento de uma nação, de D.H. Griffith, filme que glorifica o racismo e a segregação e em que os cavaleiros da Klan surgem ao som de A Cavalgada das Valkirias, de Wagner, dando um ar de grandiosidade aos cavaleiros e sua proposta política que levaria as lágrimas Goebbels, o ministro da propaganda nazista.
Gostei muito de dois outros momentos do filme que podem parece bobos, mas que acho de uma crítica fantástica. O primeiro a conversa entre o personagem de Big Daddy (Don Johnson, em um personagem propositalmente patético) e uma de suas escravas (quase escrevi empregadas) ao explicar como esta tem que tratar Django. Segundo a ele, este não pode ser tratado como o patrão, nem como um escravo, então com a ajuda das suas escravas busca o nome de um comerciante conhecido e diz que é assim que ele deve ser tratado. Ou seja, em algum lugar entre a burguesia sulista e os escravos, havia um espacinho para o trabalhador assalariado. Boa Tarantino!
A outra cena que gosto muito é da conversa entre Django e Schultz, sobre o quanto era necessária a morte do escravo D´Artagnan, interpretado por um ótimo ator, que não conheço, mas que nos passa todo o desespero de um homem no limite e sem escolhas. Neste momento Django faz ele recordar o momento em que Schultz o convenceu a matar um pai, procurado pelo sistema judicial, na frente do filho na busca pela recompensa, nos dois momentos eles utilizaram a lógica dos ''fins justificam os meios", mas Django diz mais, agora ele está seguindo a lógica do mundo de Schultz para ter acesso ao que precisa.
Gosto de Django. A trilha sonora é boa, achei que Tarantino não precisava aparecer, mas gostei da escolha do elenco, muitos deles a muito tempo esquecidos de filmes clássicos de faroeste, as paisagens são muito bonitas, tem suas cenas memoráveis e é um filme para gostar e ver novamente.
Eu ainda não consegui encontrar elementos que me fizessem desabonar ou deixar de indicar aos amigos, ao contrário de muitas críticas que estão por aí. Mas se existe moda pra gostar de certos diretores, também tem pra criticá-los. Não é?

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O fardo do "menino" branco e a ''redenção'' negra



Por ter estudado grande parte da minha infância e adolescência em escolas particulares posso dar um relato sobre um fator que toda jovem e todo jovem tem que conviver quando está em um meio prioritariamente branco. É fato, pessoal, não apenas uma impressão.
Eu estudei em escolas como Colégio Americano, Champagnat e, no já fechado, Vera Cruz, por isso posso contar que adoro quando alguém diz que racismo entre jovens não existe, pois eles são cabeça aberta ou que não existe racismo o que existe é preconceito socioeconômico, e dou muita risada quando ouço isso, porque só sabe quem vive ou testemunhou. O bullying, tão falado agora, era uma coisa ''normal'' ao olhar de muitos professores quando, por exemplo, minha colega, vamos chama-la de Nara, no ensino médio, negra e gorda, era foco de piadas e ofensas absurdas. Uma das professoras, de biologia, até ria das piadas. Eu mesma já ouvi que tinha ''mãos de macaco'', que a função da mulher negra é sexual, já fui levada para o banheiro da escola e descabelada na hora da saída, por que eu não podia ter cabelo tão cacheado, tinha ser crespo, já tive que sentar em um lado inteiro vazio da sala de aula, por uma semana, mesmo com um ''espelho de classe'' enquanto meus colegas se amontoaram em um lado da sala, bem longe de mim e sem nenhuma intervenção dos professores que presenciaram aquilo, isso fora todas as outras ''subjetividades'', heheheh, nada subjetivas, do cotidiano.
 
Mas como se não bastasse, ainda tive que conviver durante a adolescência, com o que chamo de "O fardo do 'menino' branco". Por que fardo do menino branco? Bem, vocês conhecem o fardo do homem branco, que diz que havia uma necessidade, um peso, um fardo, do homem europeu e de origem europeia em dominar povos tidos como não civilizados, não conhecem? Se não conhecem vejam minha postagem anterior ''Rudyard Kipling e a campanha imperialista''.
 
Pois bem, o fardo do menino branco, ou da menina branca, vem do machismo e racismo nosso de cada dia, que diz que toda mulher negra ou homem negro desejam diretamente e imediatamente cada homem ou mulher branca. Mais ou menos o que os gays e lésbicas vivem agora, neste mundo cheio de homofóbicos nojentos, que os tratam como seres animais com desejos sexuais incontroláveis e sem nenhum direito a desejar o outro com critérios, limites, etc. Para o homofóbico, assim como para o racista, eles desejam de modo animal a todos. Não sei se se trata de ignorância, má fé, ou se são ridículos, mesmo.
 
Assim, é com os negros também e como sempre, tento buscar na história um pouco a resposta para isso e percebo que isso está ligado a animalização do negro. Os povos que dominaram a África, através de seus discursos ''extraiam'' as características humanas (boas) do negro, o que auxiliou a na legitimação de todas as atrocidades com aos povos africanos. Animalizavam homens e mulheres, os expondo a condições de vida que nem animais suportariam e os tornaram objetos, garantindo assim todos os abusos sexuais livres de julgamento. Ainda hoje, através de piadas também, existe essa imagem do homem negro, um ser viril, sempre 'ereto' e pronto para o sexo, sexualmente animal, como um estuprador a espreita na próxima esquina, e a mulher negra sempre disposta a copular, rasa, cuja a única essência é a do corpo. 
 
Diante disso, tive muita dificuldade em criar amigos homens e brancos, por que neles ''sempre'' pairava uma sombra de dúvida se eu estava em busca de "passar de mucama e objeto sexual a sinhá". Um toque, um abraço, um sorriso, sempre vinha seguido de semanas sem ter notícias ou de palavras mais frias, duras, para manter uma "distância de segurança, baby"...(risos), só faltava eu ouvir algo assim. Este é uma característica do menino branco que tem que carregar esse fardo de sempre ser desejado por todas as mulheres negras, (riso). Claro, né! Alerto que essa boçalidade não é comum a todos os brancos, apenas os meninos, não aos homens reais. Para os meninos com este fardo, as mulheres negras não tem opiniões, gosto, desejos, critérios, são animais sexuais e sentimentais, que só se movem pelo impulso de querer o "menino branco". Pessoas, as relações entre pessoas negras e brancas são possíveis e saudáveis como qualquer outra relação, mas não existe isso de todo negro desejar o branco. Assim como não existe isso de ser "chegado" em branco ou em negro, as pessoas tem que estar com as outras não por fetiche, afinal, nem os negros nem as negras são chicotinhos, cintas-ligas ou espartilhos, as pessoas tem que estar com uma negra ou um negro pelos mesmos motivos que com qualquer outra pessoa, de qualquer outra cor. Pois se buscam um ser com uma potencia sexual insaciável vão até a locadora de vídeo mais próxima e aluguel um daqueles filmes que ficam no cantinho obscuro da loja. Nossa sexualidade não é animal, minto, é animal sim, igual a qualquer outro bicho homem.
 
A outra característica, mais hilária ainda, é a investida. O menino branco com o grande fardo, não só está certo que você está louca por ele como investe agressivamente como se ali não houvesse outra hipótese. Não sei o que é pior, lidar com isso tendo que dar um ''chega pra lá'', ou com a expressão de ''brabeza'' no dia seguinte, como se você estivesse negando o que sente, perdendo uma oportunidade única ou sendo uma ingrata.
 
A perspectiva da ingratidão está na redenção negra pela mão branca, e ela se vende em todos os lugares, no cinema, nas novelas, nas propagandas, nas histórias infantis, na nossa história enfim. Existe no imaginário do senso comum, por trás de cada vitória negra, um generoso branco que garantiu que aquilo acontecesse. É aí, também, que nosso menino branco, que possui este fardo a carregar, reproduz o que toda uma sociedade acredita. Nas novelas você nunca vai ver uma personagem negra ''dando um fora'' em um personagem branco. No cinema, se há um escravo, ele será salvo pela consciência ou atuação branca, esvaziando séculos de resistência negra.
 
Ou seja, o que quero dizer com minhas experiências é que nós negros, ao contrário que sempre tentaram passar para nos dominar e diminuir queremos ser apenas amigos também, não existe esse negro a espreita sempre querendo algo mais, ladino, traiçoeiro, que os senhores de escravos adoraram pintar para manter a todos como possíveis delatores de qualquer busca por liberdade. Nós pertencemos a esse grande prisma que é a humanidade, com todos seus feixes e matizes, como qualquer outro humano. 
 

Rudyard Kipling e a campanha imperialista

 

 

Assim como nos anos 1980 e 1990 em que a palavra "globalização" causava empolgação aos mais desavisados, durante o período de nascimento de Rudyard Kipling, 1865, foi o imperialismo, aos dominadores ao menos, fonte de grande entusiasmo. Ele mesmo nascido em Bombaim, Índia, cidadão britânico em território indiano, foi filho do imperialismo, e segundo a George Orwell, ele foi mais do que um resultado da política imperialista, foi o "profeta do imperialismo britânico".

Kipling, sempre me intrigou, pois mais do que pensa-lo como vilão que afirmava uma condição inferior dos povos dominados, sempre tentei contextualiza-lo pelo momento histórico que fez parte, mas ao mesmo tempo ao ler O fardo do Homem Branco, percebo seu entusiasmo diante da política imperialista da época, onde não há crítica ao opressor.
Julgo que ora ele parece convencido de um destino e peso que este homem branco tem que carregar, civilizando povos rasos como uma poça d´água, aos seus olhos, ora ele me aparece como mero propagandista da lógica imperialista, utilizando, com conveniência, a ideologia de um opressor rico e oprimido que produz quase que como uma máquina sem alma, cultura, vida e sonhos essa riqueza. Inverte ele os fatos, a produção não é construída pelo opressor, mas pelo trabalhador explorado ou simples escravo, produção que conduz a acumulação e ao enriquecimento crescente daquele que conduz apenas a chibata com precisão.
Ao imperialismo, assim como foi a propaganda pela privatização, globalização e neoliberalismo, foi importante uma campanha que fizesse tanto ao opressor acreditar por que faz o que faz e que fizesse o oprimido compreender por que é dominado. Ao imperialismo era importante que os povos dominados por acordos governante-governante, ou pelo genocídio, acreditassem com o tempo que o que estava acontecendo era o desenvolvimento, a chegada da civilização, um ato de povos mais evoluídos e superiores, assim foi em grande parte da Ásia e África.
O imperialismo seguiu, como bem dizia Kipling, propagando a crença de que os povos que não pertencem ao eixo Europa - EUA, são ''cativos, servos obstinados, metade demônio, metade criança", e marcam a ferro essa identidade convenientemente em todos os que desejavam dominar em busca de mão-de-obra escrava ou barata, de territórios para colonização e expansão, de braços para empunhar suas baionetas engrossando as linhas de frente das batalhas, e quando construíram essa identidade não trata-se apenas de constituir uma dominação física tão somente, mas psicológica também. Ao dominados cabe, ao mesmo tempo que estes são a força de trabalho, receber uma marca da mentirosa, universalizante, cruel, de que estes são preguiçosos, sujos, feios, ignorantes, isentos de uma cultura, traiçoeiros, mentirosos, principalmente, quando estes não se sujeitam a posições inferiores.
Podemos ver então o chamado imperialismo científico, que ajudará a alimentar a ideologia eugenica mais tarde na virada do século XIX até o início do século XX, presente na poesia de Kipling quando este considera que o dominado era: "metade demônio", ou seja, estes não possuíam uma alma humana, não possuíam características boas, eram pela sua cultura, religião, política e sociedade merecedores do sofrimento, e ''metade crianças'', sendo que neste período as crianças eram tidas como seres rasos, quase animais, passiveis de aprender apenas com a ajuda de um tutor, de um adulto, seres inferiores, enfim. No caso dos povos dominados o ''tutor'' era o ''homem branco'' a qual se refere Kipling.
E nesta obra o autor não só se utiliza da lógica dominador-dominado para descrever o processo imperialista e legitimá-lo, como também inverte os papeis, tornando o papel do dominador mais exaustivo do que aquele que será dominado, afinal, aos homens brancos é cansativo preencher de conhecimento, valores, os rasos africanos, asiáticos, etc. Expõe ele em breves falas esse trabalho exaustivo quando menciona que o "homem branco'' precisa explicar centenas de vezes, encher a boca dos famintos, estar exposto a loucura pagã, e mesmo assim "sem a mão-de-ferro dos reis, servir e limpar, a história dos comuns". Servir e limpar a história dos comuns, os "comuns" eram os donos das terras, das culturas, sujeitos políticos de seus conflitos e organizações políticas, de seus tempos históricos que não devia seguir o mesmo processo social e econômico que o europeu.
O fardo do Homem Branco (1899) - Rudyard Kipling
Tomai o fardo do Homem Branco -
    Envia teus melhores filhos
Vão, condenem seus filhos ao exílio
    Para servirem aos seus cativos;
Para esperar, com arreios
    Com agitadores e selváticos
Seus cativos, servos obstinados,
    Metade demônio, metade criança.

Tomai o fardo do Homem Branco -
    Continua pacientemente
Encubra-se o terror ameaçador
    E veja o espetáculo do orgulho;
Pela fala suave e simples
    Explicando centenas de vezes
Procura outro lucro
    E outro ganho do trabalho.

Tomai o fardo do Homem Branco -
    As guerras selvagens pela paz -
Encha a boca dos Famintos,
    E proclama, das doenças, o cessar;
E quando seu objetivo estiver perto
    (O fim que todos procuram)
Olha a indolência e loucura pagã
    Levando sua esperança ao chão.

Tomai o fardo do Homem Branco -
    Sem a mão-de-ferro dos reis,
Mas, sim, servir e limpar -
    A história dos comuns.
As portas que não deves entrar
    As estradas que não deves passar
Vá, construa-as com a sua vida
    E marque-as com a sua morte.

Tomai o fardo do homem branco -
    E colha sua antiga recompensa -
A culpa de que farias melhor
    O ódio daqueles que você guarda
O grito dos reféns que você ouve
    (Ah, devagar!) em direção à luz:
"Porque nos trouxeste da servidão
     Nossa amada noite no Egito?"

Tomai o fardo do homem branco -
    Vós, não tenteis impedir -
Não clamem alto pela Liberdade
    Para esconderem sua fadiga
Porque tudo que desejem ou sussurrem,
    Porque serão levados ou farão,
Os povos silenciosos e calados
    Seu Deus e tu, medirão.

Tomai o fardo do Homem Branco!
    Acabaram-se seus dias de criança
O louro suave e ofertado
    O louvor fácil e glorioso
Venha agora, procura sua virilidade
    Através de todos os anos ingratos,
Frios, afiados com a sabedoria amada
    O julgamento de sua nobreza.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Desmistificando o imobilismo negro - Parte II - A literatura negra

*A Negra, de Tarsila do Amaral. Escolhi essa obra antes de falar da identidade negra propositalmente, pois desde criança essa foi uma obra que me incomodava muito. Tarsila, filha de um latifundiário, produziu esta tela enquanto estudava em Paris, e provavelmente, tentou expor aquilo que mais viu no Brasil o olhar triste dos negros em contraste com o colorido do fundo tropical brasileiro, a apatia do rosto em contraposição a defesa quase infantil do corpo, a exibição do corpo do mesmo modo que se exibe um objeto sobre a mesa. A negra está sentada no chão? É ela um objeto, um animal? As pernas cruzadas em proteção contra o abuso sexual? Talvez. Era comum a fazendeiros engravidarem esposas e estuprarem suas mucamas para engravidá-las, na mesma época, para terem amas de leite para seus filhos. Talvez por isso o enorme seio exposto.

Desmistificando o imobilismo negro - Parte II - A literatura negra
Para Zilá Bernd (1987), assim como a contribuição do negro foi essencial para a música brasileira, assim o foi para a literatura, acredito ainda eu que, a literatura brasileira negra construiu-se para além do caráter de mero transplante do que era produzido na Europa, como bem foi o romantismo como as escolas literárias anteriores, para a construção de um teor mais crítico de poesia, análise e histórias. Cabe ressaltar que a autora considera, e com ela concordo, a ''literatura negra'' não apenas aquela produzida por um autor negro, para ela ''poderão ser considerados como literatura negra aqueles textos em que houver um eu enunciador que se quer negro, que reivindica sua especificidade negra" (BERND, 1987, p.16) que não é mera "epidermalização''.
Entre obras mencionadas pela autora entre as que discutem a construção de uma identidade negra estão:
Lévi-Strauss, Race et histoire; Roger Bastide, A poesia afro-brasileira; Thales de Azevedo, de A possibilidade de uma literatura afro-brasileira, em Democracia Racial; Hélio Jaguaribe, em Raça, cultura e classe; Luís Gama, em Trovas Burlescas.

Entre as obras mencionadas pela autora que constroem críticas acerca da formação de uma ideia de identidade negra, que muitas vezes se mostra errônea, estão:
Miriam Mendes Garcia, em A personagem negra no teatro brasileiro, que relata a construção deste personagem durante o período escravocrata; Teófilo de Queiroz, com o Preconceito de cor e a mulata na literatura brasileira, que analisa a forma estereotipada com que autores como Jorge Amado, Manuel Antônio de Almeida e João Guimarães Rosa, construíram uma ideia de mulher negra; Raymond Sayers, com Onze estudos de literatura brasileira, que revisa as obras de autores negros como Machado de Assis e Cruz e Souza, e a obra de ''redenção'' negra de Castro Alves; Kabengele Munanga, com Negritude: usos e sentidos, em que este coloca em conflito o sentido da identidade negra, discutindo se está é uma questão de identidade física ou de consciência opressiva.


Desmistificando o imobilismo negro - Parte I




Luís Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), foi filho de um fidalgo, Nabor da Gama Filho e de Luísa Maheu (ou Luísa Mahin), africana da nação nagô, nascida na Costa da Mina e liberta em 1812. Conforme texto autobiográfico do próprio Luís, a sua mãe foi detida em várias ocasiões, por se envolver em planos de insurreições de escravos, como a Revolta dos Malês (1835). Os malês era como os africanos que seguiam o islamismo eram chamados no Brasil.
Luísa esteve envolvida na articulação de muitos levantes de escravos na então Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX. Quituteira de profissão, de seu tabuleiro eram distribuídas mensagens políticas em árabe, através dos meninos que pretensamente com ela adquiriam quitutes.
Em 10 de novembro de 1840, o jovem Luís, então com dez anos de idade, foi vendido ilegalmente por seu próprio pai como escravo, afirma-se que devido a uma dívida de jogo. Sua vida desde então foi tão conturbada quanto da mãe. Vendido várias vezes, chegou a ser recusado em uma delas por ser baiano, povo que recebia a ''má fama'' de ser constituída de negros revoltosos e fujões. Por fim com ajuda de um amigo aprendeu a ler e chegou a rábula, ou seja, advogado que atua sem formação.
Foi um grande nome da literatura negra na luta contra a escravidão. Entre suas palavras mais fortes escreveu:
"O escravo que mata o seu senhor pratica um ato de legítima defesa."

"Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade."

Desmistificando o imobilismo negro - Introdução

Durante todo meu ensino fundamental, período em que eu ainda tinha uma mente e postura de ovelha, acreditei no imobilismo do povo negro diante da opressão que sofreram. Isso por que ''aprendi'' assim pela omissão de meus professores, entre eles, um professor de história que acreditava que os judeus eram um povo mesquinho e sabia todas as saudações nazistas. Detalhe: esse professor era nordestino. Isso me remete a lógica em que oprimido repassa a opressão de seu algoz numa busca por ''redenção''. Patético.
Bueno, pretendo então em várias postagens mencionar momentos da história ou personalidades que fizeram e fazem a diferença na busca por um mundo sem racismo.

21 de janeiro - Dia de Martin Luther King


''Nem tudo o que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado se não for enfrentado.'' (James Baldwin, para o epitáfio de Martin Luther King)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Revenda da BMW discrimina ''criança negra''

Após enxotarem um menino negro que estava em uma revendedora do BMW, funcionários perceberam que a criança não era quem eles pensavam, ele acompanhava seus pais adotivos, brancos, em uma compra. Surge então essa carta mais infeliz ainda que postei acima.
Pode ser que esse funcionário, como a grande parte da população tenha ''simplesmente'' expressado aquilo que a maioria das pessoas aprende ou ''negro é ladrão'', ou ''negro está pedindo'', ou ''o negro é um vadio''. Provavelmente, o vendedor, acostumado a atender uma clientela abastada acreditou que o menino cumpria todos os itens acima citados e o enxotou, bem como aprende o proletariado que atende a burguesia, para eles os burgueses tem que ser protegidos de negros, mendigos, pobres, a plebe, enfim. E, cabe dizer, que essa empresa não é a única, é comum ficar horas em lojas até que lhe atendam se você é negro, ouvir que uma mercadoria "é muito cara", ser recebida com má vontade, desprezo, isso é uma condição inerente ao capitalismo.
Isso está impregnado na maioria das pessoas e mesmo de modo suave é possível perceber todo o teor de ignorância, arrogância e racismo que existe nesta ''nota de esclarecimento''. E como ela clareia as coisas...
Eles usam sempre a ideia de que o problema foi a criança estar desacompanhada. Qual seria a ação se fosse uma criança branca? Procurar os pais, é claro. Uma criança negra pode ser abordada de modo impositivo por um adulto. Quem se importa?
Aprendam, nenhuma criança: negra, branca, cigana, de quipá, como for, pode ser abordada por adulto, reporte-se sempre a um responsável por ela, e na ausência, seja respeitoso.
E a ''mulher negra que trabalha conosco a 25 anos'', tendo um cargo de chefia, não possui nome?
A criança negra, como eles dizem, provavelmente não possui sexo. Ser negro é muito maior do que qualquer outra característica que uma pessoa pode ter, é dominante, é maior que o gênero, idade, como podemos ver. Ser negro é uma marca forte demais.
E se os pais do menino fossem negros? Talvez nem tivesse sido atendidos. Afinal, a consideração deles é a seguinte ''Após a abordagem, a criança se encaminhou aos seus pais, brancos" e se fossem negros? Eles serem brancos os fez compreender que havia um erro, afinal, os responsáveis pela criança eram ''branco'' e por isso, devem ser respeitados e merece uma Nota de Esclarecimento.
E por fim, o "viva a diversidade" foi a pior forma de acabar uma ''Nota'' com tantos preconceitos juntos, talvez uma ironia.
A verdade é que essa Nota de Esclarecimento só piora as coisas e espero que os pais desse menino sigam essa luta contra o racismo.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O racismo na Europa: a legitimação da exclusão

Embora o próprio artigo tenha muitas considerações infelizes e dispensáveis, algumas coisas da política internacional, principalmente, e o modo como o racismo é considerado normal e apoiável são interessantes de conhecermos. Leia com atenção para algumas gracinhas desnecessárias do autor.

http://www.sul21.com.br/jornal/2012/06/126985/

Sugestões de filmes e uma breve crítica (maldosa)

Amistad (1997) - um dos filmes hollywoodianos de grande bilheteria em que a questão da escravidão não teve suas violências dosadas. O filme possui todo teor de romantismo que um filme de Spielberg sempre tem, entretanto, consegue expor as mazelas da viagem em um navio negreiro sem dosar nas imagens. Com certeza, as melhores atuações são de Djimou Hounsou e Morgan Freeman, um personagem em contraposição ao outro, o primeiro como o negro que carrega o peso da escravização e do homem cuja vida foi roubada e o outro exposto a uma outra forma de violência bastante velada, a aculturação. Destaque para a cena em que Morgan Freeman investiga o porão do navio negreiro e depara-se com a realidade brutal.

Gente comum (2004) - um restaurante está prestes a ser fechado e dele dependem vários trabalhadores de diversas raças e religiões. O filme pode parecer simples, mas as situações bem realistas a que estas pessoas são expostas torna tudo digno de atenção. Neste filme o racismo pode aparecer da forma que você menos espera e de quem menos imagina.

Malcom X (1993) - é impossível expor como esse filme é importante para a discussão racial em poucas linhas, mas posso dizer que este é o filme que traz de modo mais justo a verdadeira posição da discussão racial que é a do enfrentamento e da construção do conhecimento para superar a aculturação e a discriminação a que o povo negro é exposto.

Tempo de matar (1996) - este filme possui vários problemas, o primeiro é que conta a história de um pai, negro, que tenta fazer justiça atirando nos homens de violentaram sua filha. Até aí, tudo vai bem, entretanto, os personagens estupradores são a caricatura que os estadunidenses adoram traçar dos sulistas, sempre suados, ignorantes, amarfanhados. Vemos aí a eterna briga sul e norte, como se existisse também essa linha dividindo o racismo nos EUA. O segundo problema é que o diretor simplesmente tira as roupas de época de Matthew McConaughey, advogado de Amistad e coloca roupas atuais, afinal ele também é advogado neste filme e a atuação é exatamente a mesma. O terceiro problema não é um problema, mas uma solução, defesa emocionada do advogado que faz as pessoas do juri imaginar o sofrimento daquela criança é uma sacada boa do filme, sem fazer nenhum segundo você imaginar que as pessoas sentiram pena daquela menina negra, mas sim que com a fala dele ele possibilitou que eles imaginassem uma menina branca na mesma situação. O probleminha é que no filme querem passar que só quando o advogado se torna emocionalmente ligado àquela história ele sabe como prosseguir. O quarto problema, esse com estrelinhas (e listras no caso), esse me deu agonia. Quando Samuel L. Jackson, o pai, é solto e corre para abraçar sua filha, a velha e boa bandeira dos EUA tremula atrás deles. Cena ridícula. Qual a mensagem? Isso só poderia acontecer no "país da liberdade". Morri.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O Mercador de Veneza, obra de William Shakespeare: retrato de seu tempo histórico?

"Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos,
dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem
os mesmos alimentos, não se ferem com as armas,
não estão sujeitos às mesmas doenças,não se curam com os mesmos remédios,
não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem
e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos?
Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno,
não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos?
Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito.
Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste?
Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser
a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança.
Hei de por em prática a maldade que me ensinastes,
sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda."
(Ato III, cena I) O Mercador de Veneza - William Shakespeare


Shakespeare foi talvez o melhor escritor de sua época a descrever as fragilidades do caráter humano e a instabilidade como que a vida se apresenta diante de cada um, do servo ao príncipe, do fanfarrão a jovem náufraga, e utilizou-se, provavelmente, das mazelas que observou ao seu redor.
No trecho acima vemos a fala da personagem Shylock, um agiota judeu, em um lampejo de sensatez do escritor ao humanizar o personagem e trazer uma crítica a postura dos seus oponentes. O Mercador de Veneza, mostra momentos de vilania de Shylock, sua ganância, sua ansia por vingança e  sua fragilidade de caráter quando para não perder suas posses opta até mesmo por mudar de religião, entretanto,  este não deixa de colocar a falta de caráter de outros personagens, como Antonio e mesmo Pórcia.
Essa é uma característica do autor, a sensatez em dar todas as matizes de personalidade aos seus personagens, portanto, não podemos assumir com certeza, mesmo com a dureza com que Shylock é apresentado, que este é um texto unicamente com a intenção de propagar o antissemitismo.
As obras são o que são, mas também o que fazemos delas, por isso, a personagem foi durante anos apresentada em teatro e cinema de modo tendencioso. Shakespeare viveu em um meio e período de perseguição religiosa, e o texto mostra muito de seu momento histórico, no período em que a obra fora escrita, em Veneza por exemplo, os judeus eram obrigados a andar de chapéu vermelho para serem identificados. A conversão de Shylock é nada mais nada menos do que o retrato da perseguição religiosa que ocorria no período Elizabetano, bem como seu caráter vil era a imagem que era feita do povo judeu.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Psiquiatria, uma indústria da morte


Inicialmente pode parecer que este vídeo não tem nada relacionado a questão racial a que nos propomos a discutir, pelo menos até a exposição do apoio que segmentos da psiquiatria deram para criar as teses que auxiliaram na segregação racial, que vai do holocausto judeu até o apartheid, a escravidão negra, a formação da KKK. Percebemos que há sempre um movimento na história que tenta, cientificamente "embasados" e financeiramente protegidos, justificar chacinas.
Quanto se trata de opressão este vídeo é perfeito em mostrar a necessidade humana de criar um padrão de normalidade, de aceitável, de doença e saúde, de estética do Homem e da Mulher.
Inicialmente pode-se observar o documentário e apenas sentir-se chocado com aquilo que ele mostra, sem aprofundar o que ele pode mostrar além, entretanto, ao perceber esta necessidade de padronização, a busca pelo lucro e exploração, como bem vemos no uso do trabalho forçado nos campos de concentração, ou a justificativa de que os negros que fugiam da escravidão eram doentes mentais e por isso devia receber ''tratamento'' adequado, as chibatadas, a competição, a desqualificação do oponente, entre outros aspectos, posso dizer que o capitalismo está diretamente ligado a tudo.
A construção de um fetiche pelas ''doenças da alma'', do psiquiátrico, está ligada a uma necessidade de explicar os sentimentos de falta, de exaustão, de tristeza, de euforia da população sem dar matéria social, política, econômica a isso. Não desejo negar que existam doenças psiquiátricas, mas que sejam milhões no mundo inteiro doentes e que todos precisem de medicação.
Se uma pessoa sente falta de algo, sentimento de vazio o que preenche esse buraco? Comprar, comer, fazer sexo, o que? Em que medida? Isso é normal ou não? Quanto tempo de nossos dias somos bombardeados por informações de mercadorias de desejo, pessoas erotizadas, promoções de comidas? Tudo está a venda na televisão, na barra lateral de nossa página do facebook, nos panfletos, nas roupas, nas revistas, jornais... desde modos de vida até produtos.
Quem cria nossos desejos, modelos e necessidades? Quem cria o modelo do que é uma pessoa de sucesso? Modelo de beleza? Modelo de homem, de mulher, de normal, de estranho?
Existe uma estética, uma forma e conteúdo ditado pelo capitalismo de quem é aceitával viver, quem deve morrer, ser preso, medicar-se, que auxilia na disseminação do ódio, da repulsa, do desconforto ao diferente.
Cabe a nós treinarmos nossos olhares para ver além da forma que nos impõem a estética do aceitável, a estética da tolerância, eu poderia dizer. Não acredito na tolerância, pois a palavra me propõem que alguém ''superior'' permite minha existência, tão pouco gosto da pieguice que fala em ver o ''conteúdo interior do outro'', acredito no simples direito que cada humano, exatamente como é, existir com dignidade.

Lei proíbe batizar bens públicos com nome de quem usou escravos

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/01/11/lei-proibe-batizar-bens-publicos-com-nome-de-quem-usou-escravos/

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

"Afirmou-se várias vezes que a ideologia racial foi uma invenção alemã. Se assim fosse, então o 'modo de pensar alemão' teria influenciado uma grande parte do mundo intelectual muito antes que os nazistas se engajassem na malograda tentativa de conquistar o mundo. Pois se o hitlerismo exerceu tão forte atração internacional e intereuropeia durante os anos 30, é porque o racismo, embora promovido a doutrina estatal só na Alemanha, refletia a opinião pública de todos os países. Se a máquina de guerra política das nazistas já funcionava muito antes de setembro de 1939, quando os tanques alemães iniciaram a sua marcha destruidora invadindo a Polônia, é porqie Hitler previa que na guerra política o racismo seria um aliado mais forte na conquista de simpatizantes do que qualquer agente pago ou organização secreta de quinta-coluna. (...) O racismo não era arma nova nem secreta, embora nunca antes houvesse sido usada com tão meticulosa coerência." (ARENDT, HANNAH, Origens do totalitarismo, p.188)

Nossas muitas peles

"Quem sou eu? Às vezes, me comparo com as cobras, não por venenoso, mas porque eu e elas mudamos de pele de vez em quando. Usei muitas peles nessa minha vida." Darcy Ribeiro
 
A frase de Darcy Ribeiro me faz lembrar das muitas peles que uma pessoa negra precisa ter na vida. Trata-se de uma negação a uma "construção mental comum", como diz Freud, quando este trata de identidade. Somos ao mesmo tempo a negação de uma identidade e a limitação a uma estética fechada, e branca, do que é ser negro. Já explico! Precisamos através da vida superar muitos papeis, somos aqueles que dão 110% de seu trabalho para ter 1/3 do que fez reconhecido. Conhecem o termo imposto negro? Trata-se disso. Somos a constante afirmação externa da sexualização da mulher negra e da potência quase animal do homem negro, somos aqueles que não podem falar alto, aqueles não podem correr na rua com o perigo ser parado pela polícia, aqueles que são alvos dos olhares dos seguranças, aqueles que recebem sorrisos surpresos se dizem que tem pós-graduação, sorrisos com algo entre a condescendência e a felicidade de este ser "um bom negro", somos aquelas que não podem ser amadas apenas fetiche do desejoss masculino, somos vários ao olhar externo sempre na expectativa de que vamos afirmar esses papeis que nos são impostos. Devemos negá-los todos os dias.
 
Ao mesmo tempo...quem é o negro? Basta perguntar isso em uma sala de aula de escola pública ou privada, na primeira com um maior índice de peles negras e na outra um índice muito, muito menor, para se obter inicialmente um silêncio absurdo, quase constrangedor. Uma das possibilidades é que esta é uma pergunta tão reducionista, afinal, eu Pedro, negro, sei quem eu sou, mas não sei quem sou como negro, se existe um negro, ou os negros, se quero ser negro, se quero arcar com o peso da história de meus antepassados, ou se quero afirmar em mim a história anunciada pelos opressores, se quero fingir-me de branco, se quero colaborar com os opressores. Quem quer afinal ser o oprimido? Em uma escola particular, falo isso por ter estudado em algumas escolas particulares na época da minha educação básica e por saber que este quadro não mudou, como dizer quem é o negro se ao menos não existem pares na minha sala? Com quem dialogar se só vejo negros nos serviços gerais, ou em um ou outro professor. De que negro falamos? Não acredito em determinismos nem na displicência pós-moderna que fala de vários negros ou de uma construção humana antes de tudo. Antes de tudo aquilo que me foi roubado, negado! O simples direito de ser.
 
E como diz Freud, quando relata por que se sente vinculado ao judaísmo, o direito de sentir a irresistível atração por "muitas forças emocionais obscuras tanto mais poderosas quanto menos podiam ser expressas em palavras, assim como uma nítida consciência da identidade íntima, a segura identidade de uma construção mental comum" (FREUD,S. Adress to the society). Mas antes disso, para que o nosso Pedro, menino negro, se levante e diga quem é o negro, estando na escola pública, e o nosso negro, da escola particular tenha isso na ponta da língua é necessário abrir um grande fluxo de conhecimento que acorde essa atração poderosa sobre a cultura negra, as histórias negras, as angústias, vitórias, os caminhos, os rostos, por uma estética que nossos olhos não estão acostumados e muitas vezes repelem, negam, para que as várias peles que usamos se tornem uma, uma luta, um reconhecimento, dignidade e identidade. Isso é muito mais urgente, é um resgate de algo muito precioso que nos foi roubado.